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Política

Campos de concentração no Ceará confinaram flagelados da seca com base em teorias racistas

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Espaços para controlar migração de flagelados eram montados perto das estações de trem. Em 1932, sete campos foram a resposta encontrada para conter o pânico de invasões aos centros urbanos. Ceará teve campos de concentração para conter retirantes da seca

Grandes terrenos cercados ou murados. Estruturas internas em disposição circular ou quadrangular. Com formatos e tamanhos diferentes, o Ceará teve sete campos de concentração com alguns pontos em comum: casebres improvisados, posto médico, cozinha, barbearia e capela. Foram espaços montados para confinar os retirantes da seca.

O ano era 1932, e o Nordeste passava por mais um período de poucas chuvas. Em Fortaleza, um dos medos dos moradores das áreas nobres era estar, mais uma vez, nos mesmos espaços que os flagelados, como eram chamados os milhares de sertanejos que fugiam da estiagem para sobreviver.

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Os campos fizeram parte de uma política pública. Era onde os flagelados encontrariam trabalho, comida e proteção. No entanto, a assistência foi insuficiente. Aglomerados em péssimas condições de higiene e moradia, milhares de sertanejos morreram nestes locais.

A escolha dos lugares foi estratégica: os dois campos de Fortaleza e os cinco do interior foram montados perto das estações de trem mais procuradas. Durante as secas, estes eram espaços de fortes tensões entre as forças policiais e os retirantes que tentavam deixar os sertões.

Eram duas rotas de trem ativas no Ceará:

Estrada de Ferro de Baturité: com cerca de 560 quilômetros, ligava Fortaleza à cidade do Crato, na região do Cariri. Passava por cidades do Sertão Central, região fortemente afetada pelas secas. Nesse caminho, foram instalados quatro campos de concentração: Quixeramobim, Senador Pompeu, Crato e Cariús.

Estrada de Ferro de Sobral: a cidade de Ipu era ligada a Fortaleza em linha férrea que passava por Sobral. Um campo foi construído em Ipu, sendo o único vinculado a essa estrada de ferro.

Findada a esperança de chuva nos primeiros meses de 1932, o número de famintos procurando os trens impressionava e virava notícia nos jornais da época com tons de alarme. No fim de abril, os sete campos começaram a funcionar. A política terminou um ano depois, com as chuvas de 1933.

A decisão foi tomada no governo de Getúlio Vargas, que tinha no Ceará o interventor Carneiro de Mendonça colaborando com ações em um período de forte centralização do poder federal.

Flagelados da seca que viajavam do interior do Ceará para Fortaleza eram contidos em campos de concentração ao longo do caminho, às margens de ferrovias

Arte/SVM

Uma vez no campo de concentração, os sertanejos só poderiam sair para trabalhar nas frentes de obras públicas. Estradas, prédios, açudes e projetos de embelezamento das cidades foram acelerados com o esforço dos retirantes.

O que veio antes dos campos

História de uma família de retirantes do Ceará integrou discurso de deputado em busca de recursos após seca de 1915

Arquivo Nacional

As intensas migrações e os cenários de miséria eram alvo de preocupação no Ceará. Dentre as autoridades que tentavam sensibilizar o governo em busca de recursos, o político cearense Ildefonso Albano anexou fortes imagens ao discurso "O secular problema do Nordeste", proferido na Câmara dos Deputados Federais em 1917.

Após a seca de 1915, vários setores da sociedade buscavam uma solução para evitar que as áreas centrais de Fortaleza fossem tomadas pelos retirantes. Os campos de concentração surgiram como medida aprovada pela opinião pública.

Aglomerar e controlar um grupo da população não era novidade no Ceará. Conforme Valdecy Alves, advogado e ativista pela memória dos campos de concentração, os aldeamentos de povos indígenas são experiências precursoras desta política.

Nos tempos do Brasil colonial, os aldeamentos foram áreas onde missões religiosas conduziam e mantinham os povos indígenas para doutrinação e conversão ao catolicismo. Algumas destas aldeias artificiais deram origem a cidades do Ceará, como Caucaia e Baturité.

Na seca de 1845, uma primeira experiência voltada para os retirantes famintos foi feita por um frade capuchinho. Naquele ano, a ideia ganhou o nome de abarracamento. Ela seria repetida em outras grandes secas, como a que castigou o estado entre 1877 e 1879.

"Esses abarracamentos existiram no período imperial e no período republicano. Observe que entrou e saiu governo, mudou sistema político, e essa política de concentração e abarracamento continuou", pontua Valdecy.

Práticas e políticas que vieram antes de 1932

Entre uma grande seca e outra, a política foi se sofisticando. Usar a mão de obra dos retirantes era uma solução aceita. No discurso da época, seria justo em troca da assistência. E ter onde trabalhar era atrativo para quem precisava sobreviver nos anos de estiagem.

Em 1932, as estradas de ferro já existiam para facilitar a migração. Diferente do século anterior, quando os flagelados faziam esse trajeto a pé até Fortaleza, chegando em estado crítico de saúde e, muitas vezes, tendo enterrado algum familiar no caminho.

A aglomeração de retirantes na estação de trem de Iguatu também foi uma das imagens apresentadas por Ildefonso Albano

Arquivo Nacional

Com as linhas de trem cortando o estado, o governo distribuía um número limitado de passagens de trem para quem quisesse chegar até as frentes de trabalho, detalha a historiadora Kênia Rios, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Mas a procura foi muito maior, e logo o governo perdeu o controle. A distribuição de passagens foi encerrada em abril de 1932. Houve inúmeros episódios de invasões nos trens. Sem chuvas e sem ter como trabalhar, os sertanejos buscavam chances de sobreviver sem depender da agricultura.

"Isso era matéria diária nos jornais. Eles colocam como 'invasão dos flagelados'. Eles anunciam com umas tintas carregadas para causar o pânico e o pavor mesmo em relação aos famintos, aos pobres da seca. 'Os flagelados estão chegando, os famintos estão chegando, mais um trem entulhado vem em direção à capital'... Então há, de fato, um incremento da pedagogia do medo em relação a essas pessoas que estão vindo", analisa a historiadora.

Em Fortaleza, havia o medo de uma repetição das cenas de miséria vistas em anos anteriores, contextualiza Frederico de Castro Neves, professor de História na UFC.

O pesquisador detalha que uma destas cenas era a ocupação do Passeio Público, área de lazer dos ricos no centro da cidade. Durante as grandes secas, o espaço ficava tomado por famílias de retirantes, que se instalavam com redes e os pertences que conseguiam trazer.

O impacto da seca de 1877 na capital pode ser imaginado pelos dados do aumento populacional. Conforme Frederico de Castro, o núcleo urbano de Fortaleza tinha cerca de 45 mil habitantes no início da seca. Um censo de 1878 mostrou que a cidade já tinha 118 mil retirantes. Este número dá conta apenas de quantos retirantes estavam na capital recebendo assistência do governo.

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A pobreza e a cidade ideal

Livro "Isolamento e Poder - Fortaleza e os campos de concentração na Seca de 1932" traz mapa da cidade e posicionamento dos campos

Reprodução

As primeiras secas do século XX interrompiam um clima de euforia em Fortaleza, que vivia o período chamado de "Belle Époque". Influenciada pela cultura francesa, a elite econômica enriquecida pela produção de algodão no Ceará empreendia reformas urbanas e projetava uma civilização ideal.

Foram anos de abrir grandes avenidas, embelezar a paisagem, afrancesar as palavras. A miséria não cabia nos cartões postais do pequeno perímetro da cidade que se inspirava em Paris.

"Toda essa idealização de cidade vai se consolidando e definindo espaços muito concretos de exclusão. Então você tem, nos anos 1930, esse aformoseamento da cidade sempre na perspectiva de excluir cada vez mais os mais pobres. Quem tem direito a essa cidade idealizada são determinados grupos", conta Kênia Rios.

O livro "Isolamento e Poder - Fortaleza e os campos de concentração na Seca de 1932", da historiadora Kênia Rios, refaz o cenário da cidade nos meses que antecederam a criação dos campos de concentração.

Pelos trens, famílias inteiras chegavam à capital. Aquelas que não conheciam ninguém na cidade andavam pelas ruas das famílias mais ricas esperando abordá-las nas calçadas. Outras procuravam as redações de jornais. Elas queriam contar suas histórias para a imprensa na esperança de doações.

Essas famílias de retirantes representavam os pobres desenraizados do interior. Como aponta o ativista Valdecy Alves, os donos das grandes porções de terra no Ceará descendiam dos brancos e portugueses que receberam as sesmarias nos tempos coloniais. Nas secas, a fome chegava principalmente para os trabalhadores que viviam em relação de dependência dos latifundiários.

"Quando havia seca, eles diziam para os moradores: 'eu não preciso de você, pode ganhar a estrada'. E aí na estrada, eles vinham para Fortaleza pedir comida, pedir ajuda ao governo. E os fazendeiros iam para onde? Eles tinham casa boa em Fortaleza, cheia de mantimentos", compara Valdecy.

Na capital, os campos de concentração de 1932 foram posicionados fora do núcleo urbano da época. Eram os mesmos espaços já escolhidos em 1915, buscando conter as massas de flagelados que iriam até o coração da cidade.

Na década de 1930, teorias raciais estavam em alta

Raças superiores e inferiores, sub-raças, grupos sociais que já nasciam para viver como subalternos. Teorias como estas ganharam ares de ciência desde o final do século XIX em todo o mundo. E traziam justificativas para uma estrutura econômica alicerçada nas desigualdades sociais.

Um dos conceitos aceitos era a eugenia, que serviria de base para as perseguições do regime nazista aos judeus e povos marginalizados da Europa a partir de 1933. Para melhorar as gerações futuras, acreditava-se que seria necessário fazer uma seleção dos seres humanos a partir das suas características hereditárias.

No Ceará, o projeto dos campos de concentração não estava longe dessa mentalidade. Especialistas no tema consideram a política pública como excludente e higienista.

"A figura do caboclo sertanejo vem dessa mistura que tem, obviamente, o europeu, mas traz muito fortemente o indígena e o africano. Então são esses grupos que já são considerados por essas teorias raciais como vidas que não importam. Diziam que essas pessoas se multiplicavam 'aos bandos', que tinham uma capacidade de proliferação, usando termos de uma biologia racista", contextualiza Kênia Rios.

A historiadora aponta que as elites econômicas aproveitavam os períodos de grandes secas para destravar obras e melhorias para os centros urbanos. A existência dos famintos era a garantia de mão-de-obra barata para as frentes de serviço. Em 1932, era visível que a quantidade de flagelados ultrapassava os postos de trabalho nas obras.

"A formação desses campos de concentração acaba sendo uma ideia que surge não exatamente para ajudar, apesar de um discurso humanista. Porque se sabe que essas pessoas vão ficar ali em condições tão precárias, que obviamente elas vão morrer. Então não é um projeto inocente. É o que a gente pode dizer, junto com (o conceito de) Achille Mbembe, que foi uma necropolítica", classifica a pesquisadora.

Campos receberam muito mais que o planejado

Imagem do livro "Isolamento e poder" mostra sertanejos mantidos em campo de concentração em 1932

Reprodução

Montados para receber entre 2 e 3 mil pessoas, houve campos de concentração que aprisionaram até 25 mil pessoas ao mesmo tempo, detalha a historiadora Kênia Rios. Ali, os flagelados foram mantidos em péssimas condições de higiene. A alimentação, chamada de 'ração', era insuficiente para corpos já fragilizados.

Kênia pesquisa o tema há cerca de 30 anos. Na década de 1990, conseguiu conversar com alguns sobreviventes dos campos. Dos relatos, ela colheu memórias de quem viu gente morrendo e tendo corpos arremessados em valas comuns todos os dias.

Outro indício foi encontrado nos registros da Igreja Matriz da cidade de Ipu, onde eram detalhadas as idas dos padres ao campo de concentração da cidade para ministrar a unção dos enfermos para quem estava próximo da morte. O livro de óbitos do templo registrava, ainda, 1 mil mortos no campo entre abril de 1932 e março de 1933,

Com base em relatórios da época, o historiador Frederico de Castro Neves traz números da lotação dos campos de concentração. Em janeiro de 1933, todos os sete campos concentravam oficialmente cerca de 90 mil pessoas.

"Havia uma obrigatoriedade de permanecer no campo e só sair para trabalhar. No entanto, o trabalho nem sempre era oferecido e as condições dentro do campo eram as piores possíveis. A mortalidade ali dentro era muito alta, com a questão principalmente de ausência de saneamento e pela difusão de doenças contagiosas", conta o pesquisador.

Segundo detalha, a vigilância para evitar fugas era feita por pessoas pagas ou pelo governo ou pelos comerciantes das redondezas. Houve casos em que retirantes assumiram também esta função nos campos. Pela grande quantidade de pessoas, nem sempre esse controle funcionava.

O maior era o Campo do Buriti, localizado na cidade do Crato. No início de 1933, ele confinava cerca de 60 mil pessoas. Pela localização no sul do Ceará, ele tinha também retirantes dos estados vizinhos, como Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte.

Outro com um enorme número de concentrados foi o de Cariús, com cerca de 32 mil pessoas em julho de 1932. Com documentações menos claras, a estimativa para os dois campos de Fortaleza é de 1,5 mil pessoas por mês, com um pico de 5 mil pessoas em janeiro de 1933.

As 'almas da barragem' em Senador Pompeu

Em Senador Pompeu, moradores fazem caminhada em memória dos milhares de mortos no Campo do Patu

Prefeitura de Senador Pompeu/Divulgação

No sertão central, a cidade de Senador Pompeu ficava na metade do caminho na estrada de ferro entre Crato e Fortaleza. E também tinha uma estação de trem que fazia ligação com a Vila dos Ingleses, uma pequena cidade erguida em 1919 para os estrangeiros que iniciaram a construção do açude do Patu.

Com a obra do reservatório parada em 1932, a vila foi transformada em campo de concentração. O local chegou a reunir 18 mil pessoas em maio daquele ano. É o único dos sete campos que ainda tem vestígios materiais no Ceará. Em 2022, o sítio histórico do Campo do Patu foi tombado como patrimônio estadual.

Há 40 anos, a cidade vive um momento anual para não deixar a história ser esquecida. É a Caminhada da Seca, que reúne milhares de moradores no segundo domingo de novembro em frente ao cemitério do campo, chamado de Cemitério da Barragem.

O trajeto é feito com orações para as 'almas da barragem', representando todos os sertanejos que morreram no campo de concentração. Na devoção popular da cidade, as almas dos flagelados são consideradas como santo coletivo.

O fim dos campos e a favelização

A comunidade do Pirambu, em Fortaleza, se originou das pessoas que ficaram concentradas no campo do Urubu

Google Street/Reprodução

A existência dos campos de concentração vingou até abril de 1933. Naquele mês, já era possível ter esperanças com o ano que tinha chuvas. Após um ano, os campos já eram alvos de críticas de diversas figuras locais, que acompanhavam as notícias e relatórios sobre doenças, mortes e péssimas condições de manutenção dos espaços.

Com o fim da medida, o governo tentou estimular o retorno dos sertanejos com a distribuição de passagens de trens e entrega de sementes para o plantio, explica Frederico de Castro. Ele explica que a redução da assistência do governo era comum ao fim de outros períodos de estiagem.

Mesmo com esse estímulo, os centros urbanos ficavam com parte da população de sertanejos. Por esse motivo, o crescimento de Fortaleza tem parte da sua explicação nos ciclos das secas.

O processo de favelização da capital se intensificou depois de 1932, conforme aponta Kênia Rios. A comunidade do Pirambu, uma das primeiras favelas de Fortaleza, começa com os flagelados que continuaram ocupando a região do antigo campo do Urubu.

A pesquisadora complementa que os centros urbanos do interior viveram dinâmicas semelhantes. Por não possuir terras e por não querer voltar a condições de trabalho incertas, muitos flagelados não voltaram para os sertões.

Segundo aponta em seu livro, os ecos dos campos de concentração e das migrações das secas seguem nas desigualdades sociais que ainda estão presentes nas cidades.

Como nas condições de moradia e na priorização de melhorias urbanas que demoram mais a chegar nas comunidades formadas historicamente pelos descendentes dos retirantes, os filhos e netos dos sertanejos que buscaram a sobrevivência nas cidades. "Nesse movimento, os retirantes deixaram de ser flagelados e passaram a ser favelados", escreveu.

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