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liberdade de expressão

A primeira fronteira da democracia (Por José Pacheco Pereira)

Escrevo este artigo no Free Speech Movement Café na Universidade da Califórnia, Berkeley.


Foto: Público

Escrevo este artigo no Free Speech Movement Café na Universidade da Califórnia, Berkeley. Foi em Berkeley que o movimento pela liberdade de expressão se deu e, como acontece com os movimentos que mais mudam, foi uma luta, com centenas de presos, ocupação de edifícios da universidade e confrontos com a polícia, "desobediência civil". Os efeitos do movimento, garantindo a liberdade de acção política, estão visíveis por toda a universidade, que mantém esse espírito de liberdade.

Junto do café está um dos vários painéis de afixação livre (está lá o Ephemera também) onde centenas de panfletos de várias origens estão pregados com agrafos ou alfinetes. Há de tudo – propaganda eleitoral local, papéis do grupo pós-maoísta com textos de Bob Avakian, anúncios de uma sessão antiaborto, um manifesto trotskista, sessões de auto-ajuda tântrica, concertos de música alternativa, tudo o que se possa imaginar. Na entrada, no campus, está um protesto pró-palestiniano permanente, mas nas bancas à volta há um grupo evangélico pró-israelita, uma associação de estudantes vietnamitas, outra dos estudantes muçulmanos. À volta, centenas de estudantes de todas as raças e cores e roupas entram e saem passando por estas bancas e lendo os painéis com os panfletos. Bem sei que, mesmo para os EUA, Berkeley é única, mas quase sinto vergonha do vazio político e do deserto de causas que são hoje as universidades portuguesas.

Vou do café para a biblioteca falar do esforço de memória do Ephemera e, nos dias seguintes, falar dos 50 anos do 25 de Abril às comunidades portuguesas. Levo comigo uma das edições do jornal República que saíram no 25 de Abril, que ostenta orgulhosamente a frase "este jornal não foi visado por qualquer comissão de censura".

Imagino a alegria e emoção da redacção após 48 anos de censura, a mais longa experiência de censura na Europa do século XX depois da URSS, ao publicar o jornal no meio dos acontecimentos que se passavam na rua. Foram coisas como esta que, na tarde de 25 de Abril, transformaram um golpe de Estado numa revolução.

Mas esta "festa" da liberdade, portuguesa e americana, não caracteriza a actual situação da liberdade de expressão, bem pelo contrário, há uma crescente ascensão da censura, de atitudes censórias. É verdade que a liberdade de expressão não esgota as liberdades fundamentais, de organização, associação, manifestação, assim como os direitos individuais e colectivos que materializam a democracia. Mas a luta contra a democracia e a sua usura começa sempre com a liberdade de expressão, seja por mecanismos formais, seja por pressões informais que incluem a autocensura. E a ascensão da censura, e o clima liberticida que a acompanha, faz-se à esquerda e à direita, com atitudes simétricas de limitar a liberdade e punir o "livre discurso".

Nos EUA, nos estados de maioria republicana e onde hoje manda Trump, o banimento de livros nas bibliotecas, por falarem de sexo, identidade e género, assim como o afastamento de professores por valorizarem as questões de raça, ou, na Guerra da Secessão, a questão da escravatura, ou ensinarem a chamada "teoria crítica", é cada vez mais comum.

Na Europa, a guerra de Gaza tem sido pretexto para cancelamento de conferências, anulação de convites, e interdição de seminários, por ser "proibido" ser pró-palestiniano e crítico de Israel. A Alemanha tem-se destacado na perseguição de políticos académicos, como Varoufakis, e com a interdição de outros da entrada no país por delito de opinião no conflito israelo-palestiniano. Do mesmo modo, a chamada "cultura de cancelamento" à esquerda é igualmente inaceitável, com o policiamento da linguagem e a facilidade com que se diz de tudo que é racista, anti-LGBT, ou contra as mulheres. As atitudes das redes sociais, proibindo o Chega [partido de extrema-direita de Portugal] por dez anos, proibição que, afinal, durou três dias, é igualmente um atentado à liberdade de expressão, mesmo que o discurso desse partido, a sua xenofobia, racismo, machismo possam ser condenados moral ou politicamente.

A única limitação à liberdade de expressão não é à própria liberdade de se dizer ou escrever o que se entende, por muito que me indigne o que lá está, mas sim saber se é crime ou não. Se for crime, de calúnia, difamação, invenção deliberada de mentiras para atacar alguém, ou qualquer outra forma de abuso legalmente tipificado, que os tribunais sejam chamados a punir os criminosos.

Não estou a afirmar a minha discordância ou concordância com qualquer das posições referidas, mas a defender o direito que existe de elas serem expressas. A liberdade de expressão não é em primeiro lugar a minha, mas a do "outro". Uma democracia que não suporta as ambiguidades sobre o terrorismo do Hamas de muitos pró-palestinianos ou a indiferença face à morte indiscriminada de crianças em Gaza de muitos pró-israelitas é frágil. E, ao proibir estas posições, por muito repulsivas que elas sejam, torna-se ainda mais frágil.

(Transcrito do PÚBLICO)

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